O Painel de Fomento apresenta uma ampla gama de dados desagregados sobre os bolsistas CNPq de todos os níveis (da Iniciação Científica (IC) à Produtividade em Pesquisa (Pq)), e em diferentes dimensões no período de 2005até setembro de 2023, permitindo a realização de cruzamentos e análises interseccionais. Assim, o Painel nos dá um panorama da participação das mulheres nas carreiras científicas no país, embora ainda tenhamos limitações para a realização desse estudo sobre a distribuição das bolsas produtividade em áreas das Ciências Humanas.
A primeira delas é que o Painel não disponibiliza dados sobre a demanda pelas bolsas de produtividade, impossibilitando analisar se as mulheres pesquisadoras estão tendo suas demandas atendidas ou não de forma equitativa às dos homens, durante o processo de seleção para bolsistas produtividade, por exemplo. Além disso, o fato de não contarmos com dados do universo total de pesquisadores no país em nível compatível para receber bolsa produtividade nos impede de testar a hipótese deque algumas mulheres podem aplicar para a bolsa produtividade mais tardiamente que os homens ou outras sequer aplicarem, embora se enquadrem no perfil traçado. Tais hipóteses seriam interessantes de serem testadas, já que a relação entre o universo total de pesquisadoras seniores por área e a aplicação ou não para a bolsa seriam importantes indicadores sobre a ascensão de mulheres na carreira acadêmica.
Assim, o Painel nos mostra apenas quais as pesquisadoras foram contempladas com as bolsas produtividade, ou seja, aquelas que já estão “incluídas” em alguma medida neste seleto grupo. Outra dificuldade a ser levada em conta para tecermos mais amplas considerações interseccionais entre as dimensões das relações de gênero, raciais/étnicas e regionais é que a introdução do quesito cor/raça só foi incluída em 2013 no Lattes (Schwarcz & Machado, 2013). Assim, há um percentual de bolsistas que não declararam cor/raça, o que pode ser considerado pequeno se comparado ao universo total de bolsistas do CNPq, mas entre os bolsistas de produtividade esse quesito alcança cerca de 16%.
O tratamento dos dados coletados na plataforma do CNPq foi realizado com auxílio do software de Análise Interseccional de Perfil – AIP (Feltrin et al, 2021), adaptado na linguagem Phyton para o uso no presente projeto, tendo em vista o grande volume de dados a serem processados (para cada ano analisado, havia cerca de 40 mil linhas de registros e mais de 900 mil células de dados). O programa é capaz de analisar milhares de linhas de uma planilha Excel®, com dados desagregados de cada sujeito (como sexo/gênero, cor/raça, região etc.) e o atribui um “perfil”. A seguir, agrupa os perfis idênticos e, finalmente, contabiliza cada um dos perfis idênticos(grupos), apresentando a frequência absoluta de cada perfil (número) e relativa(percentual com relação à amostra total). O AIP classifica os perfis, ordenando do mais frequente para o menos frequente em cada dimensão analisada. Isso nos possibilita entender como as variáveis se comportam conjuntamente, dando um retrato mais sensível e qualificado do grupo analisado (Feltrin et al, 2021).
O conceito de “PERFIL” foi concebido para dar conta da análise dessas diferentes dimensões ou variáveis de forma conjunta, ou seja, ele pode ser composto por inúmeras variáveis ou marcadores sociais de diferença, a depender da análise pretendida. Os perfis que conseguiram alcançar com maior frequência as bolsas produtividade ao longo de suas carreiras, também nos dão indicadores dedutivos dos grupos que foram excluídos, sejam pelos processos e critérios de avaliação e pontuação para aquisição das bolsas ou por sequer terem condições de estarem entre os concorrentes, por diferentes questões de acesso na carreira acadêmica (muitas vezes, anteriores à bolsa produtividade). A metodologia aplicada no AIP é capaz de operacionalizar as variáveis de diferenças sociais de forma interseccional, ampliando a compreensão sobre como as diferenças impactam e produzem desigualdades sociais e como operam as diferentes formas de exclusão (Feltrin et. al, 2021). É importante destacar que longe de pretender reduzir os indivíduos a categorias fixas, o objetivo da análise é compreender como as desigualdades sociais são compostas por múltiplos fatores que operam de maneira combinada e que tais categorias são fluidas, se comportando de maneira distinta dependendo do contexto e período histórico (Feltrin et. al, 2021).
Distribuição de bolsas produtividade CNPq por sexo, cor, região e área do conhecimento
Como objetivo de elaborar um panorama geral dos pesquisadores brasileiros financiados pelo CNPq no período de 2005 a setembro/2023, selecionamos alguns dados mais amplos sobre a distribuição das bolsas na modalidade produtividade em pesquisa.
Considerando as principais modalidades de bolsas da agência em diferentes níveis de carreira(da IC a Pq) as bolsas estão concentradas nas modalidades doutorado (29%),seguida de bolsas de produtividade (23%) no período de 2005 até setembro de2023. Os dados que temos categorizam as diferenças de gênero de forma binária, por isso, a análise a seguir não inclui outras identidades de gênero. A distribuição de bolsas nas modalidades selecionadas se mostrou equilibrada entre mulheres e homens, mas percebemos que as mulheres se concentram nas bolsas iniciais e consequentemente mais baixas na carreira de pesquisa. A grande maioria, 51,80% das pesquisadoras, recebeu bolsas de iniciação científica. Bolsas mais valorizadas e em maior nível na carreira, como é o caso da bolsa produtividade em pesquisa foram concedidas a 15,8% do total de mulheres pesquisadoras.
As bolsas destinadas ao perfil de homens apresentam uma distribuição diferente, quando comparada às de mulheres. Embora haja uma concentração em bolsas de iniciação científica, estas representam 38,23% (contra 51,8% das bolsas de IC de mulheres) do total de bolsas nas modalidades selecionadas, seguidas das bolsas de produtividade, que representam 30,22% do total (contra 15,87% das bolsas Pq de mulheres). Os dados sugerem que os homens têm uma participação mais frequente nas bolsas mais valorizadas da carreira acadêmica, ao menos em números brutos. Quando olhamos por área de conhecimento, pode ser que o privilégio das bolsas seja distribuído por áreas cuja concentração de homens seja maior do que de mulheres. Ou seja, o problema também estaria nas áreas de pesquisa privilegiadas e na busca de homens por atuarem nestes campos de pesquisa consideradas “relevantes” para o CNPq. Gerando um ciclo vicioso de desigualdade de gênero nas estruturas de pesquisa do país. A maior concentração de mulheres encontra-se nas humanidades e em algumas áreas da saúde. Assim, podemos inferir que existe uma estrutura hierárquica de valorização de certas áreas de conhecimento que promovem essa disparidade de gênero, por atraírem mais os homens e desestimulam as mulheres/meninas.
Considerando a distribuição das bolsas de produtividade em pesquisa, por serem um indicador de senioridade na carreira acadêmica, apresentamos os dados mais gerais desse grupo específico, em apenas um ano. Em 2022 foram distribuídas pelo CNPq 15.099bolsas produtividade a 16.739 beneficiários. A Ciências Exatas e da Terra foi a grande área que recebeu o maior número de bolsas, com 21,72% do total de bolsas nessa modalidade, seguida das Ciências Biológicas (16,26%) e Engenharias (13,96%). A área de Ciências Humanas ficou na quinta posição na distribuição de bolsas produtividade, com 12,81% do total. O prestígio de determinadas áreas também se mantém nos níveis mais altos da carreira e, novamente, são as áreas que mais concentram homens como bolsistas.
Figura 1 – Distribuição de bolsas produtividade por grande área (2022)
Quando analisamos a distribuição de bolsas por sexo, percebemos um predomínio de bolsistas homens nesta modalidade, representando 64,76% do total de bolsistas contra apenas 34,24% para mulheres. Ao adicionarmos na análise a dimensão “grande área”, percebemos que as áreas em que se concentram as mulheres bolsistas produtividade difere bastante das áreas que mais receberam bolsas do CNPq nesta modalidade. Enquanto 20,24% das mulheres bolsistas da modalidade estão nas Ciências Biológicas, seguida de17,99% nas Ciências Humanas e 15,44% nas Ciências da Saúde, os homens estão concentrados praticamente nas mesmas áreas que receberam o maior número de bolsas nesta modalidade, sendo elas 26,89% nas Ciências Exatas e da Terra, seguida de 17,26% nas Engenharias e, empatadas com 14% das bolsas cada, as grandes áreas de Ciências Biológicas e Agrárias. Vale destacar que menos de 10%do total de homens bolsistas produtividade estão nas Ciências Humanas (9,9%) e Ciências Biológicas (8,21%), as quais são as principais áreas de concentração de mulheres nesta modalidade.
Ao analisarmos o marcador cor/raça, independente de sexo/gênero, nas bolsas de produtividade percebemos que 70,32%dos bolsistas são brancos, 9,76% pardos, 1,48% se declararam de cor preta,1,70% amarela e apenas 0,27% se declararam indígenas. Na amostra, 16,47% dos bolsistas não declararam cor/raça em seus cadastros na agência. Considerando a diversidade da população brasileira, a distribuição por sexo/gênero e cor/raça dos bolsistas produtividade estão longe de serem representativas dessa realidade.
Observando a distribuição das bolsas produtividade por região, identificamos que 57,61% dos bolsistas estão nas IES da região Sudeste, seguida de 20,08% na região Sul e 13, 71% na região Nordeste do país. As outras regiões, somadas, não excedem 10% das bolsas nesta modalidade. Há uma desigualdade regional na produção do conhecimento no país: as regiões sudeste e sul são as que concentram IES, programas de pós-graduação e docentes com título de doutorado, sendo a desigualdade na distribuição das bolsas produtividade uma consequência deste modelo.