O campo acadêmico e universitário brasileiro é historicamente constituído por disparidades e desigualdades de gênero nas diferentes áreas de pesquisa e ensino. Para citar apenas os dados mais recentes, provenientes do Painel de Fomento em Ciência, Tecnologia e Inovação do CNPq, lançado em setembro de 2023 hoje há 16.108 bolsistas de produtividade em pesquisa no Brasil, e apenas 5.642 são mulheres, menos de 35,6%. Muitos outros indicadores apontam o chamado efeito tesoura, que se refere à diminuição percentual de mulheres quanto mais altos os níveis hierárquicos na academia brasileira. O caráter estrutural das desigualdades e violências de gênero dificulta a projeção das mulheres na carreira acadêmica, incluindo a falta de políticas de reconhecimento e incentivo à extinção da instituída dupla jornada, que transfere para mulheres a maioria das atividades de cuidado e reprodução da vida; a ausência de políticas afirmativas para meninas e mulheres em editais científicos e tecnológicos; a discriminação de gênero, consciente e inconsciente; ou ainda o assédio (sexual e moral), explícito ou camuflado nos mais variados contextos. Tudo isso opera para manter a projeção do trabalho de mulheres nas ciências aquém do possível, desejável e necessário.
Atento a essas desigualdades, o INCT Caleidoscópio – Instituto de Estudos Avançados em Iniquidades, Desigualdades e Violências de Gênero e Sexualidade e suas Múltiplas Insurgências, apoiado pelo CNPq, com inserção nas cinco regiões do País e sediado na UnB, investe na consolidação de observatórios de violências e vulnerabilidades que atingem mulheres em geral e mulheres na ciência em especial; em incubadoras sociais com ênfase na colaboração intergeracional na formação, do pós-doutorado ao ensino médio; em atividades extensionistas junto à educação básica, e em uma política de divulgação científica voltada à sensibilização de futuras gerações para a importância de mulheres nas ciências e das ciências para a melhoria de vida de todas as mulheres.
O INCT Caleidoscópio é uma conquista recente, com aprovação na Chamada 58/2022 do Programa de Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia do CNPq, mas é um sonho antigo,acalentado numa perspectiva feminista, transfeminista e antirracista em coletivas ligadas a universidades brasileiras em seus vínculos com outros setores sociais. Em 2020, núcleos de estudos de gênero e sexualidade da UFBA, da Unicamp e da UFSC lideraram um encontro nacional de representantes de núcleos dedicados à pesquisa sobre essas temáticas. Realizado online, o encontro reuniu mais de 100 pesquisadoras de todo o país. No ano seguinte, as pesquisadoras reunidas levaram adiante a criação coletiva da Rede Caleidoscópio, Rede Nacional de Centros e Núcleos de Estudos Feministas, Transfeministas, Antirracistas, Decoloniais e Transdisciplinares. A formação da rede objetivou marcar posição diante das desigualdades de gênero e sexualidade em um contexto político marcado pela perseguição aos estudos de gênero no Brasil.
Foi a partir da Rede Caleidoscópio, em suas iniciativas de articulação online, que se articulou um grupo de professoras e pesquisadoras que assumiu o compromisso de preparar a proposta coletiva que concorreu à Chamada 58/2022 do Programa de Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia -INCT. Aprovada a proposta, o INCT Caleidoscópio tornou-se o primeiro INCT marcadamente feminista do país. A urgência das iniciativas lideradas pelo INCT Caleidoscópio mostra-se não apenas nos dados com que iniciamos este texto, mas também na constatação de que das 58 propostas aprovadas naquela Chamada de 2022 apenas seis são coordenadas por mulheres. Mais ainda: nas violências e obstáculos que enfrentamos todas as mulheres nas universidades e centros de pesquisa brasileiros na execução de nossas funções.
Coordenado e gerido por pesquisadoras oriundas de diferentes áreas acadêmicas e regiões do País, o INCT Caleidoscópio reúne grupos de pesquisa de 24 universidades das cinco regiões. A atuação do Instituto inclui quatro principais frentes, cujas iniciativas piloto são apresentadas nos textos que compõem este Boletim. São elas: 1) os observatórios de violências e vulnerabilidades que atingem mulheres em geral e mulheres na ciência em especial, com propósito de gerar indicadores capazes de fomentar políticas – o observatório piloto focaliza as regiões Sul-Sudeste; 2) incubadoras sociais com quadros universitários e da sociedade civil, fortalecendo relações entre universidade e sociedade, com ênfase na colaboração intergeracional entre níveis de formação do pós-doutorado ao ensino médio – a incubadora piloto tem escopo nas regiões Norte-Nordeste; 3) ações extensionistas, enredando o Caleidoscópio na educação básica – iniciativas piloto foram realizadas na região Centro-Oeste; 4) política de transferência de conhecimento e divulgação científica voltada à sensibilização de futuras gerações para a importância de mulheres nas ciências e das ciências para a melhoria de vida de todas as mulheres – nessa frente online, colocamos no ar o site do Caleidoscópio e suas redes sociais, produzimos este Boletim e estamos trabalhando em podcasts e outras iniciativas.
A criação do INCT Caleidoscópio, sua aprovação em chamada pública e a instalação de seus projetos piloto neste primeiro ano de existência do Instituto é, sem dúvida, expressiva conquista para os estudos feministas, transfeministas e antirracistas no Brasil, com potencial para fortalecer as redes existentes e fazer emergir outras, combatendo também a desigualdade regional em ciências, por sua organização em sedes regionais com atuação articulada. O Instituto visa à formação acadêmica e política de mulheres, com escopo interdisciplinar, intergeracional e interinstitucional, para fazer frente às iniquidades, desigualdades e violências que as afetam.
Além do foco na exposição e análise das estruturas falocêntricas e racializadoras que ainda prevalecem nas IEs Brasileiras, o INCT tem como meta mapear, dar visibilidade e incentivar insurgências, práticas que promovem rupturas substanciais e sugerem novas possibilidades de atuação equitativa e mais democráticade produção de conhecimento. As múltiplas insurgências contra esses sistemas compartilham o objetivo de desafiar as normas sociais que os perpetuam, o que demanda investimento em políticas que abordem o problema de maneira enfática. O conhecimento produzido coletivamente nas iniciativas do INCT deverá fomentar e qualificar o debate público, incidindo sobre a formulação de políticas institucionais e políticas públicas, partindo do princípio de que favorecendo a atuação de mulheres nas ciências podemos produzir uma ciência mais relevante para as vidas de todas as mulheres.
Algumas realizações do INCT Caleidoscópio em seu primeiro ano de existência
Nosso primeiro ano foi de organização das três sedes básicas de atuação, para isso, montamos uma equipe com o Comitê Gestor, Coordenação e a atuação de 06 bolsistas de pós-doutorado, cinco bolsas de trabalho técnico e 02 de Iniciação Científica. Equipe Sul-Sudeste (UFCS e Unicamp), equipe Centro-Oeste (por enquanto apenas UNB), equipe Norte-Nordeste (UFBA e UFPB). Cada uma destas equipes foram adensadas ao longo do ano, como mostram os textos publicados nesta edição do boletim, ampliando o trabalho conjunto com as 24 instituições parceiras e outras, que foram convidadas para compor as nucleações regionais do INCT.
Uma das principais realizações de visibilidade do INCT foi a criação do site oficial e de nossas mídias sociais (Instagram, YouTube), incentivando trocas, divulgação de pesquisas, produções cientificas (artigos, livros e palestras), entrevistas, materiais audiovisuais, podcasts, dentre outros. A nossa busca é por criar vias horizontais de diálogos com e entre nossos pares da comunidade cientifica e, como não poderia deixar de ser, entre nós acadêmicas e os movimentos sociais (feministas, LGBTIA+, negro, moradia, movimentos indígenas, movimentos pela terra, por moradia, pelo fim das desigualdades sociais), gestores públicos, instituições de ensino, ONGs, enfim, fazer circular para além de nós mesmas nossos investimentos na busca de um conhecimento mais rigoroso e ampliado sobre as múltiplas formas e manifestações de violências que infelizmente ainda são naturalizadas e vividas nas relações cotidianas dentro e fora das universidades brasileiras.
Parte desse esforço se fez sentir ainda nas nossas articulações por parcerias institucionais internacionais, articuladas em atividades como, por exemplo, nossa participação em duas reuniões promovidas pelo British Council no Brasil (uma em São Paulo, outra em Brasília), nas quais o conselho apresentou sua proposta para um Marco Referencial para Igualdade de Gênero em Instituições de Ensino Superior no Brasil, marco este que em muito dialoga com as propostas do nosso INCT Caleidoscópio, principalmente no entendimento de que é fundamental promover a diversidade de gênero no Ensino Superior, bem como nas áreas STEM. No entanto, embora o projeto do British Council represente uma excelente iniciativa, consideramos que a ausência de uma consulta aos órgãos e núcleos de pesquisa dedicados aos Estudos de Gênero e Sexualidade no país, torna a proposta unilateral, ressoando práticas colonialistas. Outra diferença importante entre a proposta do British Council e o INCT Caleidoscópio é que a nossa premissa não é apenas de inclusão, pois não é uma igualdade neoliberal que nos pauta na luta contra discrepâncias de gênero nas diversas áreas de conhecimento, mas sim, a geração de conhecimento sobre quais mulheres, numa perspectiva interseccional, estão participando e quais estão fora das instituições superiores. Também nos move a necessidade de saber que dificuldades estão enfrentando no desenvolvimento de suas carreiras acadêmicas. Sabemos que os “perfis” considerados de sucesso, aqueles que recebem bolsas e acesso a promoções, que ascendem a postos de liderança, criam outras formas de disputa e de não cooperação entre mulheres e entre estas e homens, por exemplo.
No âmbito das atividades internacionais, destacamos as visitas técnicas realizadas pela coordenadora do INCT à Espanha – em colaboração com o Centre of Discourse Studies , financiadas pela Capes e pela FAP/DF – e à Universidad de la Republica, do Uruguai, pela qual foi convidada a ministrar curso e palestra. A vice-coordenadora do INCT esteve, com apoio da Unicamp e do CNPq, junto à Universidade de Lancaster e ao King’s College, no Reino Unido, visando fortalecer as pesquisas conjuntas, as trocas e, ao mesmo tempo, dar visibilidade às nossas criações e debates. Assim, já no primeiro ano de criação do INCT Caleidoscópio estreitamos laços com parcerias nacionais e internacionais registradas em nossa proposta inicial.
Diante desse entusiasmo que tomou conta do INCT Caleidoscópio em 2023, convidamos cada pessoa, estudiosa ou não de gênero, acadêmica ou não, para que se inteire do que estamos fazendo. A leitura dos demais textos que compõem este primeiro boletim certamente permitirá uma compreensão mais minuciosa e refletida sobre os primeiros passos dados, seja na análise dos indicadores oriundos do CNPq, com um olhar detalhado e específico para o que nos revelam os números da distribuição de bolsas de pesquisa nas Humanidades; seja sobre nossas frentes de nucleaçāo que visam, além de articular o debate sobre desigualdade e violências de gênero nas universidades, levantar ações exitosas em curso, para fazer florescer o debate naquelas instituições em que ainda não há auditoria especializada no atendimento de violências de gênero. Nossa primeira incubadora traz ainda uma reflexão fundamental sobre a presença de mulheres quilombolas nas universidades do Norte e Nordeste e avalia as dificuldades que enfrentam em suas formações, tanto pelas diferenças ligadas ao campo do saber e das lógicas (não) partilhadas, quanto para se manterem economicamente durante seus períodos de estudo, ou seja, traz um balanço das lutas pela permanência de mulheres quilombolas no ensino superior. O texto sobre a Incubadora piloto também apresenta uma visão geral da estrutura de funcionamento da Incubadora, com suas duas sedes (UFBA E UFCG) e conselhos. O boletim traz também uma reflexão sobre o que entendemos por “divulgação científica” numa perspectiva feminista e amefricana e, por último, não menos importante, explora as trocas realizadas na atividade extensionista do “Caleidoscópio enredado nas escolas”, realizado em projetos de extensão apoiados com bolsas pela Universidade de Brasília.
Neste primeiro Boletim, relatando algumas de nossas realizações iniciais, queremos dar as boas-vindas à comunidade engajada em pesquisas feministas, transfeministas e antirracistas de todo o Brasil. Daqui para frente, este Boletim terá duas edições anuais. Desejamos uma boa leitura e permanecemos, sempre, abertas. Estamos em contato!