Recalques que se desnudam;
novos eus que se projetam/
caras que se transfiguram
envernizadas de suor.
Giram bambas as cabeças;
as pernas sāo piões girando, e, entre fugas e chegadas, almas e corpos
supõe-se que se vāo desagregar.
E o batuque continua
alto e profundo; dir-se-ia
vir dos dedos das estrelas,
vir dos abismos do oceano,
vir dos seios da floresta,
vir dos longes de mim mesma,
vir de cardíacas bulhas,
vir do peito do Brasil!…
(Gilka Machado)
Ao escrever sobre as marcas africanas do “pretuguês” no Brasil, Lélia Gonzalez expõe sua certeira e indignada análise sobre como o racismo estruturou, e ainda estrutura, a crítica e o conhecimento cultural elaborados nas universidades elitizadas do século XX – reiterados e reformulados nas mídias (jornal impresso, rádio, televisão e hoje nas diversas plataformas e multimídias sociais) que nomeia as práticas de pessoas negras sob “o véu ideológico do branqueamento” que, segundo Gonzalez, recalca toda a potência cultural amefricana com “classificações eurocêntricas do tipo “cultura popular”, “folclore nacional”, que minimizam a contribuição da cultura negra” (Gonzalez, 1988). Glória Anzaldúa, tal qual Lélia Gonzalez, analisa a estrutura racista que atravessa sua sociedade de origem e nos chama atenção para a importância do espanhol chicano, uma língua inventada pelo povo chicano que comunica suas realidades e seus valores, no sentido de superar a tradição do silêncio.
O silenciamento tem sido uma condição histórica na qual muitas e diversas mulheres estão imersas, principalmente se considerarmos a longevidade das estruturas de precarização e vulnerabilização étnico-raciais; e de acesso a escolarização, direitos e justiça reprodutiva – dificultando ainda mais suas participações efetivas nos rumos e debates éticos/políticos que permeiam a produção de conhecimento, tecnologias e equipamentos sociais, que em muito mudariam suas qualidade de vida e das outras vidas não-humanas que coabitam na terra.
e quando falamos temos medo
que nossas palavras não sejam ouvidas
nem bem-vindas
mas quando estamos em silêncio
ainda assim temos medo
Então é melhor falarmos
lembrando-nos
de que nunca fomos destinadas a sobreviver
(LORDE, 1995, tradução nossa)
Sepultando os silêncios, as mulheres têm aberto caminhos. O impacto do movimento feminista na produção do conhecimento científico, por exemplo, tem sido narrado por distintas pesquisadoras (KELLER, 2006; HARDING, 1998; MARTIN, 2006; PINHEIRO, 2019; SCHIEBINGER, 2008; LOPES 2006 e 2016). O INCT Caleidoscópio, um instituto que faz ciência a partir de uma perspectiva feminista interseccional, surge quando alguns núcleos e centros de pesquisa sobre mulheres, gênero, sexualidades, dissidências e suas interseccionalidades completam uma média de 30 a 35 anos de existência. Contexto no qual o debate sobre as conquistas feministas, no âmbito acadêmico e na sociedade como um todo, passaram por ataques e violências – como foi, por exemplo, o apagão vivido dos incentivos e promoções de pesquisas no âmbito dos estudos de gênero no país desde o golpe de 2016 que levou a extrema direita a ocupar os poderes Executivo e Legislativo no Brasil. Em outras palavras, o INCT Caleidoscópio emergiu no cenário das políticas públicas de incentivo ao desenvolvimento de redes acadêmicas de pesquisa como resistência feminista – tendo como um de seus objetivos a divulgação científica voltada para a sensibilização de jovens pesquisadoras em formação, e de futuras gerações, para a importância da atuação politizada de mulheres nas ciências e das ciências para a melhoria de vida de todas nós. Nesse sentido, estamos rompendo silêncios. E é importante destacar o que entendemos por “divulgação científica”, pois também estamos tentando criar aqui uma forma de comunicação que comunique nossas realidades.
O intuito primeiro da divulgação científica é de promover uma relação colaborativa e democrática entre pares da própria comunidade científica, assim como entre instituições e pessoas que pesquisam e a sociedade como um todo. Ao longo dos anos, distintos modelos foram formulados para pensar essa relação. E se na história das ciências as mulheres foram invisibilizadas e o seu acesso aos espaços de pesquisa e produção científica negados e/ou dificultados, podemos afirmar que a relação entre ciência e sociedade foi inicialmente pensada por homens, mais precisamente homens brancos e euroestadunidenses inseridos numa cultura neoliberal, individualista, falocêntrica, fundada na racializaçāo e subalternizaçāo das alteridades (sexuais, étnicas e de gênero).
Eu fui criança num tempo de esperança. Queria ser cientista desde os primeiros dias de escola. (…) Nem sei se já conhecia a palavra ciência naquele tempo, mas queria mergulhar em toda essa grandiosidade. Eu estava seduzido pelo esplendor do Universo, deslumbrado pela perspectiva de compreender como as coisas realmente funcionam, de ajudar a revelar mistérios profundos, de explorar novos mundos – talvez até literalmente. Tive a boa sorte de ver este sonho em parte concretizado. Para mim, o fascínio da ciência continua tão atraente e novo quanto naquele dia, há mais de meio século, em que me mostraram as maravilhas da Feira Mundial de 1939. Divulgar a ciência – tentar tornar os seus métodos e descobertas acessíveis aos que não são cientistas – é o passo que segue natural e imediatamente. (SAGAN, 1996: 38-39)
Carl Sagan é certamente um dos mais aclamados divulgadores científicos e, de fato, seu trabalho (seja com romances, séries ou filmes) de popularização das ciências segue um marco na história da divulgação científica. Entretanto, ao lermos sua declaração sobre a relação ciência e sociedade, temos sua visão do que é o trabalho de divulgar ciência: de um lado uma pessoa (nesse caso, um cientista) – sujeito do conhecimento, aquele que sabe; de outro um conjunto de pessoas – sujeitos que não sabem, aqueles geralmente objetificados que precisam de alguém para traduzir o conhecimento científico para que possam acessá-lo. A relação de poder explicitada é também a perspectiva hegemônica sobre a ideia historicamente construída do que é divulgação científica: uma espécie de ponte que separa dois mundos diferentes, opostos e incomunicáveis (SAMAGAIA, 2016).
Por um modelo de divulgação científica feminista, amefricana e anticapitalista
Quando fomos proibidas
de chegar perto daquela árvore
o melhor a ser feito
foi justamente comer o fruto.
O preço estava lá
e ficamos assustadas
– sem saber lidar com a dor.
Mas é depois que vem o prazer
sem o que não haverá justiça.
Graças à Eva, à Lilith, à Maria, à Madalena.
Sem elas não teríamos a poesia do altíssimo preço.
Mentiram que Deus não queria o nosso gozo.
As mulheres, desde sempre, desconfiaram
(Cocco, 2007:21)
No Brasil, as primeiras pesquisas sobre divulgação científica datam do final da década de 1980 e se concentram majoritariamente nos programas de pós-graduação em educação e educação científica – o que impacta a perspectiva construída sobre a área (SAMAGAIA, 2016). Seguindo a lógica europeia, o modelo do déficit ou modelo da instrução pública aparece como o hegemônico (MASSARANI, 2012). Não vamos nos aprofundar sobre as concepções que têm baseado as ações de divulgação científica, mas brevemente, no modelo de instrução pública há uma hierarquização entre as pessoas produtoras de ciência (os cientistas) e a demais população, as trocas que se estabelecem entre sociedade e cientistas são unidirecionais e estão associadas a existência de uma lacuna de conhecimento entre ambos. Sendo necessário um mediador entre eles, como um jornalista. Além disso, o modelo atribui à ciência um valor de verdade universal e objetiva.
Já o modelo do déficit parte do princípio que não é possível compartilhar o conhecimento científico com pessoas que desconhecem ou não possuem uma cultura científica. Em decorrência disso, os primeiros trabalhos de divulgação científica envolvendo o modelo do déficit envolviam quatro elementos visando garantir um letramento científico das pessoas: i) O conhecimento de fatos básicos da ciência; ii) A compreensão dos métodos racionais como o raciocínio probabilístico; iii) A apreciação adequada dos aspectos positivos da ciência e da tecnologia e iv) A negação da superstição e de crenças rejeitadas pela ciência. (SAMAGAIA 2016:46).
Em comum, ambos os modelos possuem uma concepção de sociedade composta por pessoas desprovidas do conhecimento (dito científico) e incapazes de apropriar-se dele sem um instrutor/mediador. Uma perspectiva hierárquica, unidirecional, que desconsidera outras formas de conhecimento e a necessidade de diálogo/troca no processo de aprendizado e divulgação científica.
Se a perspectiva hegemônica de divulgação científica estabelece uma fronteira que separa sociedade e ciência, a perspectiva política e ética do INCT Caleidoscópio sobre divulgação científica situa-se nesse espaço de fronteira o esborrando, ou seja, nos posicionando dentro de uma perspectiva feminista interseccional e emancipatória de divulgação científica, que visa transformações radicais do social, no sentido cada vez mais pleno do respeito às diferenças e diversidades de gênero no âmbito da produção científica.
Quando falamos numa perspectiva feminista amefricana e anticapitalista, reiterando o legado de Lélia Gonzalez e tantas outras que nos antecederam, estamos posicionando nossa divulgação científica em prol da equidade de gênero e da justiça social – o que significa não apenas visibilizar pesquisas sobre as demandas de equidade, diversidade e inclusão de grupos socialmente minorizados por marcadores de raça, poder, classe, gênero e sexualidade, mas também conduzir ações que permitam que essas sujeitas sejam vistas como protagonistas na produção científica. Um exemplo disso, é o podcast em andamento “Mulheres Cientistas Quilombolas” que propõe uma escuta atenta e crítica do social a partir das vozes, estudos e experiências desse grupo.
Quando falamos numa perspectiva descentralizada, estamos posicionando nossa divulgação científica em prol da co-construção de saberes, ou seja, interessada num diálogo profundo entre ciência e a sociedade, capaz de romper a unilateralidade e comunicar também a partir da realidade das pessoas. Exemplos são as ações extensionistas desenvolvidas com adolescentes de escolas públicas, no projeto de extensão “Caleidoscópio Enredado nas Escolas: Femifilme Cine-Debate”, e da pesquisa “Equidade e diversidade racial, de gênero e sexualidade na produção do conhecimento científico e artístico”, desenvolvida com alunas do ensino médio da rede pública.
Outro ponto de se afirmar anticapitalista é considerar a realidade concreta brasileira de grande desigualdade social para pensar as ações de divulgação científica, o que significa considerar pelo menos: os diferentes rumos dos avanços tecnológicos e científicos, o desenvolvimento dos meios de comunicação e sua presença massiva na sociedade – inclusive com as redes sociais ocupando local central de desinformação, descrença na ciência com forte conflitos políticos. Nesse sentido, o INCT Caleidoscópio também segue investindo nas redes sociais e outros meios de comunicação, objetivando contrapor e insurgir contra o avanço das cosmopercepções de mundo (Oyěwùmí, 2021) que se valem de pseudo-moralismos, guerras, violências, extremismos e posições totalitárias para impor formas abissais de desigualdade e exploração das vidas (humanas, não humanas e da própria terra) e seus recursos vitais.
Atualmente, o INCT Caleidoscópio possui:
- Um site online, cuja página divulga a estrutura, as atividades e as pesquisas do INCT, bem como dos Centros e Núcleos parceiros;
- Redes sociais do INCT para comunicação mais dinâmica e regular com a sociedade e disseminação dos resultados das pesquisas (neste momento possuímos Instagram, Facebook e Youtube);
- Boletins semestrais com a divulgação das atividades do INCT e pequenos textos analíticos como forma de divulgação e também de prestação de contas à comunidade científica e sociedade;
- Projetos de extensão e pesquisa com a comunidade.
Outras ações previstas:
- Criação de podcasts mensais interligando os vários centros e núcleos integrantes e as parcerias comunitárias do INCT;
- Promoção de seminários de Pesquisa na sede do INCT, bem como nas regiões das IES que compõem o mesmo;
- Produção de material audiovisual de popularização científica e cultural sobre desigualdades, assimetrias e violências de gênero, com foco nas pesquisas e análises do INCT;
- Promoção de seminários internacionais de pesquisa, com a participação de pesquisadoras e pesquisadores internacionais parceiros para aprofundamento dos debates, leitura dos dados produzidos pelo Observatório e avaliação das ações desenvolvidas pelas Incubadoras Sociais, e movimentos sociais.
É importante destacar que nossa política de divulgação científica segue em desenvolvimento e que cada ação pensada é voltada para a sensibilização de futuras gerações para a importância da inserção e atuação de mulheres nas ciências, para a melhoria das condições de vida de todas as mulheres, sobretudo as quilombolas, negras, transexuais e indígenas. Nesse sentido, daremos ênfase a estudos/relatos de casos sobre trajetórias de profissionalização de mulheres nas diversas áreas científicas e às pesquisas em escolas públicas de ensino médio, indígenas e quilombolas, para conseguirmos avaliar quais são as principais dificuldades sentidas pelas estudantes para continuarem seus estudos.
O Boletim
Finalmente, esta é a versão piloto do Boletim do INCT. Nossa intenção é que ele se consolide também como um espaço de troca e interação dos distintos núcleos e frentes que compõem o INCT. Convidamos as pessoas que compõem esses grupos, na qualidade de nucleações INCT, para compartilharem reflexões, problematizarem achados e nos brindarem com suas inquietações e indignações, para que possamos estar em constante alerta e ampliarmos nossa atuação em redes regionais, nacional e internacional .
Reforçamos também nosso desejo que esse espaço também fortaleça as vozes feministas que têm produzido ciência, através do compartilhamento das produções das/os pesquisadoras/es que compõem o INCT – visto que a geopolítica da circulação de conhecimento científico não favorece o ecoar de vozes de pesquisadoras negras, trans, indígenas, de periferias, de regionalidades e áreas de conhecimento subalternizadas.
Que nosso boletim seja como os tambores ritmados a nos convocar, como na lírica de Gilka Machado, para o movimento dos corpos/corpas, das mentes e corações, por uma ciência feminista, ciente de sua busca pela plenitude dos sentidos e da vida.
REFERÊNCIAS:
COCCO, Marta. Sete Dias. Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 2007.
GONZALEZ, Lélia. Por um Feminismo afro- latino- americano. Ensaios, Intervenções e Diálogos. Organização Flávia Rios e Márcia Lima- Rio De Janeiro: Zahar, 2022
HARDING, Sandra. Existe un método feminista. Debates en torno a una metodología feminista, v. 2, p. 9-34, 1998.
KELLER, Evelyn Fox. What impact, if any, has feminism had on science? [Tradução: Maria Luiza Lara; Revisão: Valter Arcanjo da Ponte e Kikyo Yamamoto] In: cadernos pagu (27), julho-dezembro de 2006: pp.13-34. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/cpa/a/bSBYCtG9zPV55wBnbQkkpCb/abstract/?lang=pt >
LOPES, M.Margaret. Sobre convenções em torno de argumentos de autoridade. cadernos pagu (27), julho-dezembro de 2006: pp.35-61
LOPES, M. Margaret & SOMBRIO, M. (org). Dossiê Gênero em Ciências: histórias e políticas no contexto iberoamericano. cadernos pagu (49), 2017:e174905
MACHADO, Gilka. Poesias completas. 2 ed. Apresentação: Eros Volúsia Machado. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial Ltda/ FUNARJ, 1991
MARTIN, Emily. A mulher no corpo, Rio de Janeiro, Editora Garamond , 2006.
OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero . Trad. Nascimento, Wanderson Flor do. . – 1. ed – Rio de Janeiro: Editora Bazar do Tempo, 2021. 324 p.
PINHEIRO, Bárbara. As mulheres negras e a ciência no Brasil: “E eu, não sou uma cientista?” COMCIÊNCIA, São Paulo, 08/02/2019. Disponível em: <https://www.comciencia.br/as-mulheres-negras-e-ciencia-no-brasil-e-eu-nao-sou-uma-cientista/>
SAMAGAIA, Rafaela. Comunicação, Divulgação e Educação Científicas: uma análise em função dos modelos teóricos e pedagógicos. Tese de Doutoramento. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-graduação em Educação Científica e Tecnológica, Florianópolis (SC), 2016.
SAGAN C. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela na escuridão. Companhia das letras, São Paulo, 1996.
SCHIEBINGER, Londa. Mais mulheres na ciência: questões de conhecimento. Apresentação de Maria Margaret Lopes. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.15, supl., jun. 2008, p.269-281. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/hcsm/a/LZcRqYbsQR4cxYkgfCGyjyr/?format=pdf>