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Após os cruzamentos dos dados gerais sobrea distribuição de bolsas na base do Painel de Fomento em CTI do CNPq, trabalhamos com os dados brutos disponibilizados pelo CNPq e utilizamos o software AIP para realizar uma análise interseccional dos perfis mais frequentes que receberam bolsa produtividade em 2022, considerando as variáveis sexo e raça nas dimensões região e área disciplinar.

Quando consideramos sexo e região, observamos que o perfil mais frequente – aquele que congrega o maior número de bolsistas com características idênticas nos marcadores e dimensões selecionados- é o masculino na região sudeste, seguido do feminino na mesma região, como esperado, já que a região concentra o maior número de bolsistas. O interessante é que os perfis seguintes são o masculino na região sul, seguido de também masculino na região nordeste. Somente depois, na quinta posição, voltamos a identificar um perfil feminino, na região sul. Ao fazermos o mesmo teste com o marcador cor e a dimensão região, temos uma grande concentração de bolsistas brancos da região sudeste, seguido de brancos da região Sul, não declarados no Sudeste e bolsistas brancos no Nordeste. O primeiro perfil não branco (pardo)aparece no Sudeste, na quinta posição dentre os mais frequentes.

Ao associarmos cor e sexo, com as dimensões região e área disciplinar, temos um retrato interessante dos perfis mais frequentes dos bolsistas produtividade no país.

O perfil mais frequente neste caso é o masculino, branco, da região sudeste e da área disciplinar da Física, com 167bolsistas (frequência absoluta), o que corresponde a cerca de 1% do total do universo analisado (frequência relativa). O primeiro perfil feminino aparece em nona posição dentre os mais frequentes, com 70 bolsistas mulheres, brancas, da Educação na região sudeste. O primeiro perfil fora da região sudeste está na 13ª posição e é da região sul, masculino, branco e da Agronomia. O primeiro perfil não-branco (dentre os que declararam cor) foi Pardo, masculino, da Física na região Sudeste, com 39 bolsistas. O perfil amarelo mais frequente esteve na região sudeste, sendo masculino na Física (com 19 bolsistas). O primeiro perfil mais frequente que se declarou de cor preta, foi o Masculino, na área de Física da região sudeste, com 12 bolsistas neste perfil. Finalmente, o primeiro perfil indígena foi o masculino, da física na região nordeste (com 3 bolsistas),seguidos de um empate entre 5 perfis com 2 bolsistas cada, onde apenas um deles é feminino (área de engenharia de materiais, região nordeste), e apenas um deles está fora da área de exatas e engenharias (masculino da área de educação, região sul). Dos 49 bolsistas indígenas, sendo a grande maioria lotada nas regiões sul e sudeste (30 bolsistas, sendo 23 deles no Sudeste), concentrados nas áreas de exatas e saúde e apenas 16 são mulheres.

Figura 2 – Resultado do software AIP do perfil interseccional dos bolsistas produtividade CNPq (2022)

As Ciências Humanas apresentaram, em 2022,2.128 beneficiários e 1.934 bolsas de produtividade, o que corresponde a cerca de 12,71% e 12,80% do universo total analisado. Com o foco nas bolsas produtividade em 6 áreas disciplinares selecionadas (sociologia, ciência política, antropologia, filosofia, educação, ciências sociais) dentro das Ciências Humanas, objeto deste trabalho, temos 1.449 bolsas distribuídas entre1.595 bolsistas, sendo 52,46% homens e 47,54% de mulheres. Vale destacar que embora as Ciências Humanas não seja uma área de concentração dos homens bolsistas produtividade (menos de 10% desses estão nas ciências humanas),embora seja uma área de concentração de mulheres, quando comparamos a distribuição de bolsas por sexo, mais da metade do grupo é formada por homens.

Ao agregarmos os bolsistas com a metodologia interseccional, temos 596 diferentes perfis (considerando cor, sexo, região e área disciplinar). Temos 758 mulheres distribuídas em 236perfis, sendo 157 perfis únicos, e 837 homens distribuídos em 239, sendo 158únicos. No primeiro momento, identificamos que as mulheres estão distribuídas em mais perfis do que os homens (proporcionalmente), o que poderia representar uma maior diversidade. Entretanto, as mulheres estão entre os 2 perfis mais frequentes da amostra, e tal concentração em poucos perfis representa uma homogeneização do grupo, ou seja, uma menor diversidade. Com base nisso, podemos supor que as mulheres que conseguem ultrapassar as barreiras e se beneficiarem de bolsas produtividade nessas áreas são “mais iguais” do que os homens, demostrando que outros fatores como cor/raça, região de vinculação e área de atuação (mais ou menos prestigiadas) influenciam fortemente suas chances de ascensão e reconhecimento na carreira.

Percebemos que os perfis mais frequentes(que concentram o maior número de bolsas) são da área de Educação, são brancos e estão nas regiões Sudeste e Sul. Na ordem dos mais frequentes, temos com 70bolsistas o perfil Feminino, Branco, Sudeste, da área de Educação, seguido deum empate, com 55 bolsistas, do perfil Feminino, branco, sul, também da área de Educação, e do perfil Masculino, Branco, da região sudeste, também da área de educação. O primeiro perfil fora da área de Educação é o da Ciência Política, sendo masculino, branco e da região sudeste, com 24 bolsistas, seguido da Sociologia, Masculino, Branca, também no Sudeste, com 20 bolsistas.

O primeiro perfil “pardo” de maior frequência é feminino, da região sudeste e da área de educação, com 9bolsistas. O segundo perfil, é masculino, da região nordeste e da área de História, com 6 bolsistas, seguido com um empate (com 5 cada) de bolsistas com perfil masculino, da área de Educação da região Nordeste e Sudeste. No caso do perfil preto, o mais frequente é masculino, da região sudeste e da área de História, com 4 bolsistas. Empatados na segunda posição de mais frequentes entre os que se declararam pretos, temos o feminino, da região sudeste da área de educação e o masculino, do nordeste também da área de educação.

A situação dos grupos autodeclarados como “indígenas” é ainda mais emblemática. Temos apenas 7 bolsistas produtividade nas áreas selecionadas com esse perfil. Interessante perceber que a grande maioria dos perfis indígenas são masculinos, da área de Educação e estão nas regiões sul e sudeste no país, muito embora as regiões sul e sudeste não seja mas que mais tenham representantes deste grupo étnico no país.

Da mesma forma, embora as regiões norte e nordeste do país tenham uma maior concentração de declarados “pretos” e “pardos”, os perfis mais frequentes de ambos os grupos estão na região sudeste, o que parece nos indicar que as barreiras para a ascensão na carreira de determinadas minorias no universo de bolsistas produtividade são intensificadas ou amenizadas por outros marcadores e dimensões que os atravessam, como gênero, área de atuação ou pela região de vinculação.

Neste contexto, podemos inferir que as oportunidades e maiores chances em receber bolsa produtividade nas áreas analisadas de determinados perfis são proporcionais (estão intimamente relacionadas) à quantidade de características consideradas “dominantes”(branco, homem, área de Educação e estar na região sudeste). No caso da análise apresentada, o perfil “dominante” não foi identificado a priori, mas a partir de sua maior concentração nos perfis, o que demonstrava uma maior frequência e, consequentemente, probabilidade de ascensão na carreira. No caso das áreas selecionadas nas ciências humanas, fica clara a hierarquização de gênero e raça entre os bolsistas, além de existirem áreas mais prestigiadas dentro do campo, somada a uma desigualdade regional na distribuição das bolsas, fatores que influenciam na ascensão na carreira de determinados grupos. Alguns espaços e áreas parecem ser mais “amigáveis” a essas minorias, por terem maiores oportunidades. Esses perfis minoritários quando se tornam mais frequentes podem inspirar novas gerações a seguirem a carreira acadêmica, servindo de modelo pela identificação. Da mesma forma, a falta de perfis minoritários em outras áreas e regiões podem desestimular essas novas gerações pela ausência de identificação ou modelos a serem seguidos na carreira acadêmica.

A discussão apresentada neste trabalho nos deu uma amostra das possibilidades e da potência das análises interseccionais, levantando e denunciando as “dominâncias”, para que possamos repensar o lugar das mulheres (cis e trans) nas diferentes áreas do conhecimento. Além disso, tais análises podem contribuir para a avaliação das estruturas hierárquicas de distribuição de bolsas e outras formas de fomento à pesquisa pelo Estado, tendo em vista que as áreas consideradas “estratégicas” costumam estar direcionadas ao desenvolvimento econômico do país, mas que não irão se traduzir em uma melhoria das condições de vida da população geral se não vierem acompanhadas deum desenvolvimento em outras dimensões, como o social e o ambiental. As ciências humanas, por exemplo, as quais poderiam contribuir para um desenvolvimento social mais justo e igualitário estão entre as áreas que menos receberam incentivos ao longo dos anos.

Os números, gráficos e estatísticas podem nos auxiliar a refletirmos mais abertamente sobre o modelo de país e de desenvolvimento que estamos investindo, nos dando também elementos para questionar essas formas de hierarquização dos saberes na ciência. Sabemos que “des-hierarquizar” os saberes vai muito além da identificação dos “perfis” que alcançam espaços de prestígio, mas lançar luz sobre este aspecto nos ajuda a revelar as estruturas que sustentam a repetição histórica dessas desigualdades.  Em outras palavras, enquanto Observatório Caleidoscópio, esse monitoramento inicial nas bases de dados do CNPq, nos mostrou todo o potencial e a necessidade de expandirmos essas análises interseccionais para outras bases e áreas de conhecimento, para que possamos antever e sugerir transformações relevantes para a questão da desigualdade de gênero na produção do conhecimento, como também repensar os perfis, as áreas, e os privilégios que estamos reiterando, sem deslocar ou fazer ruir hierarquias e desigualdades há muito instituídas nas ciências brasileiras.

REFERÊNCIAS

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______. Nota Técnica sobre o Painel de Fomento do CNPq. Publicadaem 01/09/2023. Disponível em http://bi.cnpq.br/painel/fomento-cti/doc/nota_tecnica/.Acesso em 21/01/2024.

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