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Como dispositivo de diálogo da equipe da incubadora com as mulheres discentes quilombolas do ensino superior, na Universidade Federal de Campina Grande, em 2023, aconteceram as primeiras entrevistas semiestruturadas com estudantes quilombolas matriculadas em diferentes licenciaturas na Universidade Federal de Campina Grande – Campus do Centro de Desenvolvimento do Semiárido (CDSA/UFCG), situado no Cariri paraibano.

Criado  no contexto do Programa REUNI, oficialmente em 2009, teve como propósito ampliar fisicamente as instituições, otimizando recursos e promovendo um ambiente acadêmico mais acessível e eficiente. Com uma abordagem pedagógica voltada para soluções sustentáveis. O CDSA busca contribuir para o desenvolvimento regional e ampliar o acesso à educação superior no Semiárido. A adoção de processos seletivos especiais para povos do campo, indígenas e quilombolas em alguns cursos vem induzindo a presença de quilombolas nos cursos de graduação e de pós-graduação ofertados.

De acordo com o “Censo Demográfico 2022 – Quilombolas” do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a região Nordeste abriga mais da metade (68,2%) da população quilombola do Brasil, totalizando 905.415 pessoas desse grupo étnico. Na Paraíba, entretanto, o número de quilombolas informado é o menor da região, com um contingente de 16.584 pessoas. A pesquisa do IBGE destacou 51 municípios paraibanos com população quilombola registrada, apresentando as seguintes concentrações em ordem alfabética: Alagoa Grande (946), Cacimbas (1.698), Conde (cerca de 3.000), Dona Inês (7,8%), Diamante (9,4%), João Pessoa (2.260), Riachão do Bacamarte (8,8%), Santa Luzia (1.324), e outras localidades no estado. Segundo o “Guia de enfrentamento ao Racismo e fortalecimento da Rede de Promoção da Igualdade Étnico Racial da Paraíba”, disponibilizado pela Secretaria do Estado da Mulher e da Diversidade Humana, em 2023 existiam 50 comunidades quilombolas auto-reconhecidas e, destas, 46 comunidades quilombolas dispunham de certificação pela Fundação Cultural Palmares (SEMDH, 2023).

Dentre as mulheres quilombolas matriculadas no CDSA com as quais estabelecemos os primeiros diálogos, 5 (cinco) estão cursando Licenciatura em Educação do Campo e 1 (uma) Ciências Sociais. São jovens, com idade entre 18 e 29 anos. O objetivo era apresentar a Incubadora de Pesquisas Feministas Antirracistas N/NE/AM Legal – INCT Caleidoscópio e o projeto “Mulheres Quilombolas nas Ciências: Políticas de Permanência nas Universidades e Produção de Subjetividades”, abordar aspectos das trajetórias acadêmicas e ouvir suas expectativas em relação a uma Incubadora com estas características.

As estudantes são provenientes da Comunidade Quilombola Caiana dos Crioulos, em Alagoa Grande/PB e Comunidade Quilombola Gurugi, em Conde/PB, ambas certificadas pela Fundação Cultural Palmares. Distribuem-se em moradias externas autogestionadas ou residem na moradia universitária do Campus, a maioria com vínculos familiares na forma de “primas”. As mulheres, principalmente as mais velhas, se deslocam ao município Sumé-PB com as(os) filhas(os). Todas essas estudantes recebem atendimento da Assistência Estudantil, sendo que quatro delas, integram ou já integraram programas educacionais específicos, como o PET (Programa de Educação Tutorial) e o PIBID (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência).

As perguntas do roteiro de entrevistas foram formuladas para abordar aspectos das trajetórias formativas e expectativas sobre a incubadora: “O que esperar de uma incubadora de pesquisas para mulheres quilombolas nas ciências?”; “Você realiza atividades de iniciação à pesquisa, docência ou PET?”; “Planeja realizar mestrado e doutorado?”; “O que acha importante para a formação de mulheres cientistas quilombolas?”; “Qual é a importância de mulheres cientistas quilombolas para suas comunidades?”; “Quais conteúdos acha importante que sejam abordados em oficinas para mulheres quilombolas na universidade?”.

Nessa pesquisa, considerou- se a  interseccionalidade, introduzida por Crenshaw (1989), em interlocução com os movimentos sociais negros, como uma sensibilidade analítica,  a qual, permite considerar simultaneamente diferentes formas de opressão, não apenas adicionando opressões, mas compreendendo a complexidade dos cruzamentos dos processos discriminatórios. Investigando as desigualdades sociais, com ênfase nas relações de poder e promoção de justiça social, a interseccionalidade considera as inter-relações entre categorias como raça, gênero, classe, sexualidade, nação e geração, propondo uma análise interconectada (Collins e Bilge, 2021). Ao refletir sobre as violências interseccionais que atravessam as trajetórias formativas de mulheres quilombolas no Brasil, torna-se imprescindível considerar a história diversificada das mulheres negras no país e contribuir para o registro das narrativas das mulheres que enfrentam violências interseccionais no processo afrodiaspórico (Nascimento, 2018).

As seis jovens quilombolas entrevistadas narraram violências interseccionais que impactam diretamente nas suas trajetórias formativas no ensino superior, sendo algumas delas: a) ausência de rede de apoio formal às mulheres quilombolas que são mães; b) dificuldade de acesso a informações sobre espaços de formação graduada e pós-graduada; c) baixa presença de conteúdos curriculares sobre quilombos e mulheres quilombolas; d) fragilidades no acompanhamento e orientação dos processos de formação; e) formação insuficiente da equipe institucional no que diz respeito às questões raciais, étnicas e de gênero; f) ausência de um ambiente e quadro docente diversificados do ponto de vista etnico-racial e de gênero no qual se reconheçam e g) baixo incentivo à realização de estudos e pesquisas que abordem e publicizem a vivência da população quilombola nas ciências.

Ametista destaca a importância de uma rede de apoio, especialmente para aquelas que são mães, visando facilitar a participação na universidade e a conclusão de cursos. Dados semelhantes são identificados em pesquisa (Marques, Ferreira, Pereira, Boa Sorte, Lacerda, 2022),  Ao expor a situação das mães e a rede de apoio necessária na universidade, ela fala das realidades materiais que obstaculizam o ingresso dessas mulheres na universidade, mas ao mesmo tempo, sua preocupação com a formação de novas cientistas quilombolas e que a comunidade saiba quais os caminhos possíveis para a formação universitária.  Nesta direção, Ametista relata  as dificuldades enfrentadas pelas jovens mães:

“Eu espero que esses resultados da incubadora cheguem nas comunidades quilombolas pelo menos aqui na Paraíba, né? Porque eu vejo que muitas meninas têm interesse em participar, mas não tem as oportunidades que precisam, né? Pra tá aqui dentro da universidade. Exemplo, muitas têm filhos, mas não tem…É…Uma rede de apoio que consiga deixar elas virem para a universidade e conseguir cursar algum curso, né? E que os resultados e a universidade junto com esses resultados possam ir para as comunidades para conhecer também, né? Quem são as pessoas que estão lá e que precisam da universidade também para a formação de novos cientistas e por aí vai”. (Ametista, estudante quilombola)

A estudante expressa a necessidade de que os resultados da incubadora alcancem as comunidades quilombolas na Paraíba, ressaltando que muitas meninas têm interesse, mas enfrentam dificuldades devido à falta de oportunidades. Ao longo de toda narrativa enfatiza a relevância da aproximação entre universidade e comunidade para produção de conhecimentos que dialoguem com “quem está lá”. Historicamente, as mulheres desempenham um papel central na gestão dos quilombos brasileiros, nas estratégias de cuidado com a terra e na defesa de direitos territoriais (Fernandes, Galindo, e Valencia, 2020). Ametista descreve as violências interseccionais enfrentadas por jovens quilombolas e as estratégias que adotam com base nos modos de vida orientados pelas potências epistêmicas, educativas e civilizatórias enraizadas na ancestralidade quilombola (Santos, 2022).

Cotidianamente, mulheres quilombolas desenvolvem estratégias para enfrentar o racismo, sexismo, violências e a expropriação dos territórios. Além disso, exercem a importante função de transmitir  valores sociais, políticos, religiosos, culturais, medicinais e educacionais do quilombo às gerações seguintes (Santos, 2015; Santos, 2022; Luz et. al. 2023;). A partir da revisão dos critérios masculinistas que focalizavam  atributos relacionados aos homens e masculinidades no cotidiano quilombola, a exemplo da virilidade, as mulheres quilombolas adquiriram um novo estatuto na historiografia sobre quilombos e nos processos de titulação, realçando as suas relações de cuidado com a terra e com o território (Almeida, 2022).

Turmalina destaca a importância crucial da entrada na universidade para a formação dessas mulheres, ressaltando as barreiras de divulgação existentes nas comunidades, especialmente nas rurais e afastadas, como quilombos e assentamentos. Ela compartilha a experiência pessoal de ter descoberto o curso de licenciatura através de um professor, mas só ter ingressado na faculdade anos depois, perdendo tempo fora do ambiente universitário: “[…] eu terminei o magistério em 2014 e só fui entrar na faculdade em 2019. Quanto tempo eu perdi fora da universidade!?”. Além disso, menciona que eventos e palestras ocorridos no âmbito do CDSA/UFCG estimularam sua continuidade nos estudos, destacando a relevância de abordagens relacionadas à terra e à história de seu povo. Essas narrativas evidenciam a relevância das estratégias de divulgação e apoio para as mulheres quilombolas no acesso ao ensino superior, além de realçar a importância de elementos culturais e históricos em suas trajetórias acadêmicas.

A adoção de currículos caracterizados por um pequeno diálogo com as epistemes quilombolas (Silva, 2022) afasta as estudantes da possibilidade de aprofundarem conhecimentos sobre as formas de fazer, viver, sentir e também de produzir ciência nos quilombos, conforme pode ser percebido na narrativa da entrevistada Ametista:

“Eu acho que o que dificulta nossa entrada na universidade também está relacionado aos assuntos        abordados no curso. Eles não incluem temas sobre as comunidades quilombolas, e o objetivo é que possamos retornar às nossas comunidades para ajudar, né?… É, o ensino é tradicional, e eu acho que falta isso, sabe? Mais inclusão de disciplinas voltadas para as comunidades quilombolas ou turmas específicas, que contribuam para que possamos voltar para as comunidades, aplicar o que aprendemos e fortalecer ainda mais nossa identidade quilombola”. (Ametista, estudante quilombola)

Ametista ressalta a necessidade de inclusão curricular de disciplinas voltadas aos saberes e fazeres das comunidades quilombolas. Sublinha a importância de um ensino que fortaleça as vivências culturais presentes nesse espaço.

Rubi, estudante de licenciatura, destaca que os temas abordados  nos projetos de pesquisa não despertam interesse por não abordarem temas relacionados à educação quilombola, especialmente os projetos de iniciação à docência:

“[…] por eu ser de comunidade quilombola, não me interessam, não são tão interessantes, né? […]  Fosse abordado temas voltados para educação quilombola ou algo do tipo, né? Seria mais interessante para nós que somos de comunidades quilombolas”. (Rubi, estudante quilombola)

As lacunas que Rubi  detecta no currículo acadêmico são apontadas como uma barreira à posterior contribuição científica dessas estudantes nas suas comunidades quilombolas. A presença de mulheres quilombolas egressas das universidades nas comunidades é percebida como uma estratégia importante para promover a aproximação entre universidade e comunidade. Nesta mesma direção, Jade, estudante que está no último semestre do curso de Licenciatura Interdisciplinar em Educação do Campo, pontua:

“É muito importante porque através disso é que as novas gerações vão ter onde se espelhar… Antes a gente não tinha essa amplitude de conhecimentos. A partir do momento que a gente se deu a vez de ir em busca dos nossos objetivos, a gente pôde enxergar isso. Então, é uma coisa que a gente vai poder passar para as próximas gerações […] Os nossos pais, avós não tiveram essa oportunidade, eles não tinham como dar esse leque para a gente […]”. (Jade, estudante quilombola)

Âmbar, quando questionada sobre a possibilidade de atuar como socióloga em seu território, explicita a importância da presença de quilombolas cientistas nos contextos urbanos:

“[…]se eu for trabalhar nessa área… Não vou trabalhar no quilombo[…] Mas eu acho que seria de suma importância pelo menos ter na cidade, né!? Uma quilombola cientista”. (Âmbar, estudante quilombola)

A presença das discentes quilombolas tem o potencial de transformar o perfil do ensino, permitindo que essas estudantes se autorizem a moldar suas trajetórias acadêmicas, protagonizando mudanças efetivas. Nesse sentido, o ingresso na instituição de ensino superior não é apenas uma transição acadêmica, mas uma oportunidade de expressar e fortalecer a presença das epistemes quilombolas no contexto científico. Acerca das perspectivas posteriores à formação, Jade discorre:

“[…] Depois que eu finalizar o curso de Licenciatura em Educação do Campo aqui […] eu vou ter que pensar na possibilidade do mestrado, doutorado e, além disso, um trabalho fixo na comunidade […] Quando eu vim aqui estudar na universidade, eu já vim com o intuito de, quando finalizar aqui, lecionar na própria comunidade porque, desde antes, a gente percebe que a escola em si da comunidade não tem tanto esse recebimento de pessoas da comunidade. As oportunidades não vêm, começou a vir agora, recentemente… Na comunidade, tem como vice-diretora gente oriunda da comunidade e tem um professor oriundo da comunidade”. (Jade, estudante quilombola)

A narrativa de Jade, jovem graduanda quilombola, deixa entrever sua busca por qualificação acadêmica contínua, expressa no desejo de realizar mestrado e doutorado após concluir a Licenciatura em Educação do Campo. Sua intenção de lecionar na comunidade demonstra um compromisso com a educação no território, ressaltando a necessidade de maior inclusão e representatividade nos espaços educacionais. A recente presença de representantes locais quilombolas na direção da escola é citada como um avanço, indicando uma mudança gradual, já que existem apenas duas quilombolas atuando nas instituições educacionais do território.

Safira não tem planos de ingressar na pós-graduação. Relata que o seu  objetivo ao concluir o curso é iniciar uma carreira como professora na educação quilombola para diminuição da evasão escolar. De acordo com ela, “muitas jovens, ao terminarem apenas o ensino fundamental, partem para trabalhar no Rio de Janeiro”, interrompendo sua trajetória educativa. Ela afirma: “Eu planejo só terminar esse daqui e começar a dar aula…Para trazer mais quilombolas para cá, né?”.

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